17 de out. de 2011

Do amigo Murilo Silva sobre a Ponta do Coral

Foto:Lúcio Dias Filho



Nasci no bairro da Agronômica e lá fiquei durante 35 anos. No impulso da memória ganho a carona dos passeios de canoa no interior de muitos mangues, o mergulho no mar e lagoas hoje proibido, submerso na lembrança molhada de tudo aquilo permitido. 
   
Lembro-me da Ponta do Coral, um pedacinho de terra anexado à gigantesca área do Abrigo de Menores, com seus saborosos pés de goiaba, araçá e pitanga e exóticos eucaliptos – majestosos prendedores de pandorga. Lá gerações promoveram encontros, jogos e piqueniques de escolas e famílias, com farofas, bolas, bolos e mamadeiras. Que saudade das peladas nos campos do Abrigo, identificados por números, acho que eram cinco ao todo, e o da “primeirinha” ficava na Ponta do Coral. Saudades das extensas e organizadas hortas cultivadas e colhidas pelos meninos sem famílias, sob a supervisão de seus tutores, os Irmãos Maristas. Saudades do teatro e do cinema, da carpintaria e da sapataria, do galinheiro e do chiqueiro. Lembro-me de um grande golpe dado contra o patrimônio do povo, em 31 de março de 1980. Seria para mim um domingo como outro qualquer, não fosse a fogueira criminosa no interior do alojamento do Educandário 25 de Novembro, o nosso Abrigo de Menores.

Rolos gordos de fumaça saíam pelas janelas de forma contínua. A sinfonia do inferno estava ali formada. Sons misturavam-se ao calor do fogo. Labaredas que lambiam e consumiam os parapeitos como línguas de lagartos gulosos, seguidas de estalos da madeira que desabava do interior do prédio. Gritos e muita correria. Pessoas entravam com as mãos na cabeça e saíam segurando objetos, na tentativa de salvar qualquer coisa que encontrasse pela frente. As gaiolas de canários abandonadas nas calçadas demonstravam o grau de solidariedade dos manezinhos passarinheiros do bairro. Eu, como um bombeiro solidário improvisado, entrei ardido pelo calor insuportável e com os olhos enfumaçados. Cego temporariamente identifiquei dois quadros com o meu tato apressado. Sai correndo, como um mecenas orgulhoso salvando a cultura pictórica. Somente lá fora percebi que se tratavam de dois retratos oficiais, um do Presidente da República Federativa do Brasil, Excelentíssimo General João Batista de Figueiredo, e outro do Excelentíssimo Governador do Estado de Santa Catarina, Jorge Konder Bornhausen, este já chamuscado nas mãos.

O barulho da correria e dos destroços caindo já diminuía com a ação dos bombeiros que chegaram bem depois de nós, moradores do bairro, internos e funcionários da instituição. Consegui então, diante do silêncio quase sepulcral, ouvir o choro inconformado do querido Irmão Celso, um dedicado ex-administrador do Educandário. Suas lágrimas, impotentes para apagar o fogo, invadiram nossas almas naquele momento. Um incêndio que não deixou vítimas, mas queimou junto com o prédio nossa cidadania. A ausência de uma explicação oficial coerente, além de nos encher de dúvidas, nos vitimou com a perda de um significativo patrimônio do Estado.

Quem estava lá pôde perceber algo estranho no ar, além da fumaça. O fogo surgiu, meio sorrateiro, no momento tranqüilo da ausência de pessoas no recinto. Naquele tempo não havia rebelião. De onde surgiu então a iniciativa?

Abandonado durante anos, aquilo que o fogo havia poupado foi parcialmente demolido, permanecendo apenas pequenos módulos. Seu terreno foi retalhado e negociado. A entrada da Ponta do Coral – em 10 de novembro de 1980 – foi cercada por arames farpados e portões com cadeados. Um mês e seis dias depois, foi vendida para a empresa Carbonífera Metropolitana, que mais tarde promoveu algumas “benfeitorias” no local, como a derrubada dos pavilhões que abrigavam a antiga lavanderia do Abrigo de Menores – antigo depósito de óleo durante a I Guerra Mundial –, cortou todas as árvores e substituiu a antiga cerca por um muro cinza salpicado de vergonha.


Para mim, o incêndio no Abrigo de Menores foi um marco de destruição da cidade, que entrou há pouco mais de 25 anos numa lógica imobiliária insensata e auto-destruidora, acinzentando nosso verde patrimônio natural e esverdeando a moeda do mercado turístico-imobiliário.
                            

Murilo Silva
Professor de filosofia, fundador da Associação dos Moradores da Agronômica (AMA), ex-militante do Movimento Ecológico Livre (MEL); e membro do Fórum Cultural de Florianópolis.

3 comentários:

  1. Bom dia...Sua explanação poética e saudosista é maravilhosa. Quisera eu ter recebido esse dom de relatar tão bem o passado do Abrigo de Menores. Eu como você sou um saudosista. Estive no Educandário 25 de Novembro de fevereiro de 1977 à 1982. Sai devido ao incêndio.

    Segue meu blog com fotografias: http://abrigodemenores.blogspot.com/

    Caso você tenha alguma foto sobre esse tema, gostaria de postá-las no blog para que outros possam ter acesso.

    Abraços.

    Djalmo

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    1. Esqueci da vírgula em: Eu, como você, sou um saudosista. Sem vírgula fica estranho.

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    2. CarO Djalmo,se possivel gostaria de enviar-te um exemplar do Livro "Esquinas da Minha Ilha ( Edição esgotada),onde presto minha sincera homenagem a todo corpo docente e discente do espetacular e saudoso Abrigo de Menores.
      Para contato; abarretoneto@yahoo.com.br ou pelo fones 99622502-

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